segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Invisibilidade da Violência contra a mulher....

Invisibilidade da Violência contra a mulher, acesso à Justiça e Legitimação social: Reflexões sobre a eficácia da Lei Maria da Penha na vida das brasileiras



Sirlanda M. Selau da Silva[1]

RESUMO
O presente artigo aborda a natureza da violência contra a mulher, como processo construído socialmente, a partir da constituição e naturalização das desigualdades entre os gêneros, frente ao paradigma de afirmação dos direitos humanos e fundamentais. Outrossim, sobre o prisma da aplicação da Lei Maria da Penha, identifica os aspectos que dialogam com a sua eficácia, especialmente através do debate sobre o acesso à justiça e sobre a legitimidade social. De tal modo, que a pesquisa evidencia o potencial instrumento que se caracteriza através da eficaz aplicação desta Lei, que associado a um processo de reversão dos elementos que fundam as manifestações de violência, aponta para um processo de desconstrução das desigualdades e realização da justiça.


INTRODUÇÃO

As formas de violência contra mulher compõem uma parte invisibilizada da história da humanidade. É recente o reconhecimento deste fenômeno como interesse público, ou seja, para além das relações e interesses privados. O que desafia a sociedade e o direito, posto que estas manifestações de violência constituem-se como óbice aos direitos fundamentais como realização, especificamente as mulheres.
A Lei Maria da Penha é fruto do reconhecimento da devastadora presença da violência no âmbito privado, que se processam no lar e entre os mais próximos entes que compõem as relações de afeto, destinando proteção específica as mulheres, vulnerabilizadas pelo grau de desigualdade que se estabelece nestas relações. Cuida-se de uma violência que se caracteriza necessariamente a partir de relações de poder, e por isso, tende a situar-se, enquanto exercício, entre os indivíduos que historicamente estão posicionados conforme a hierarquia social de oposição e desigualdade entre os gêneros.
Importa neste trabalho, uma reflexão sobre quais são os elementos que possibilitam uma sistematização sobre a eficácia da Lei Maria da Penha.
Para tanto, estrutura-se em dois momentos, partindo da identificação da violência ora em análise, sua natureza e constituição, pelo desenvolvimento de processos de desigualdades, como componente permanente das relações de poder entre homens e mulheres. Através da análise dialética da doutrina sobre os direitos fundamentais, e a elaboração feminista, determina um objeto mais abrangente, que no caso é a violência sexista, para, na segunda parte do estudo, analisar aplicadamente aspectos da legislação, que trata da violência doméstica e familiar.
Deste modo, a sistematização das divergentes posições da doutrina, e das pesquisas que tratam da aplicabilidade deste diploma legal, se propõe a subsidiar as reflexões sobre a eficácia da Lei. No sentido, de analisar a sua capacidade de produzir efeitos e transformações no cotidiano marcado pela violência doméstica. Com isso, identificando as perspectivas que se colocam como instrumento de efetivação dos direitos das mulheres enquanto experiência concreta, para além das normas afixadas no ordenamento jurídico nacional.

Leia o trabalho na íntegra no:

http://contramachismo.wordpress.com/2010/11/25/invisibilidade-da-violencia-contra-a-mulher-acesso-a-justica-e-legitimacao-social-reflexoes-sobre-a-eficacia-da-lei-maria-da-penha-na-vida-das-brasileiras/

[1] Militante da Marcha Mundial das Mulheres, graduanda do curso de Direito da Fundação Escola do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Artigo apresentado ao Premio Igualdade de Genero CNPQ-SPM, outubro de 2009.

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Este artigo foi publicado, no site do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM, que é uma pesquisa que os autores apresentaram em em 2009 ao Premio Igualdade de Gênero CNPQ/SPM.

Compartilhamos com todas, a alegria pela publicação!


terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A quem interessa comparar feministas a nazistas?


Dentro de um movimento social, ou mesmo dentro de pequenos grupos sociais organizados, é possível encontrar grupos ou pessoas com características mais radicais. Na maioria das vezes o termo “radical”, no sentido filosófico, é usado para definir grupos que optam pelo uso de ações extremas, por exemplo, violência física ou verbal, para gerar transformações sociais. Porém, o termo “radicais” pode possuir infinitas interpretações. No caso do feminismo as pessoas gostam de definir como radicais as mulheres que queimam sutiãs em praça pública (você já viu alguma?), as que são incisivamente a favor da legalização do aborto, as que afirmam que o casamento é uma instituição social de aprisionamento da mulher e até as que defendem uma reforma de gênero na língua portuguesa. Porém, há pessoas que afirmam existir um tipo de feminista que quer a extinção dos homens e para compará-las aos nazistas deram-lhe a alcunha absurda de feminazi.
mais:
http://contramachismo.wordpress.com/2010/12/13/a-quem-interessa-comparar-feministas-a-nazistas/

Leia também:

Feminazi, Luis Nassif e a esquerda com atitudes machistas

http://contramachismo.wordpress.com/2010/12/11/feminazi-luis-nassif-e-a-esquerda-com-atitudes-machistas/

P*** q** o p****! (Barbara Szanieck)

P*** q** o p****! (Barbara Szanieck)

As eleições presidenciais iniciaram de modo convencional com os partidos políticos tratando de contratar reputados profissionais de marketing para cuidar das campanhas de seus candidatos nos tradicionais meios de comunicação. Todavia, duas novidades se faziam notar. A primeira era a presença de duas mulheres concorrendo à Presidência do Brasil. Desde o início, a campanha de Dilma foi marcada pela tentativa por parte dos marqueteiros de transformá-la em uma “moça bem-comportada” nos moldes burgueses descritos por Simone de Beauvoir em suas memórias: como se vestir, como se maquiar, como sorrir para a imprensa. Também sob holofotes, Marina realizava uma mistura de estampas e adereços ousados com coques e saiões pudicos. Já Serra se mantinha burocraticamente cinza da cabeça aos pés. A segunda novidade com relação às eleições presidenciáveis anteriores fora o uso das ditas “redes sociais”, onde por “redes sociais” entende-se não somente a ferramenta tecnológica agregadora de conteúdos mas, sobretudo, o agenciamento social agregador de desejos. Todos os candidatos tinham um site de campanha oficial na internet, mas sabiam que era preciso ir além (aprendizado da campanha de Obama nos EUA). Quem, de cara, melhor entendeu a necessidade dessa mobilização foi Marina Silva ao dar sinal verde ao “Movimento Marina Silva”, talvez pelo fato de participar de um partido (PV) menos consolidado do que os dois outros concorrentes (PT e PSDB). Segundo indicação do site do movimento, a divisão de tarefas, por assim dizer, se dava da seguinte forma: enquanto o movimento cuidava da “metodologia e facilitação”, o partido garantia a “estrutura”. Contudo, o incentivo a uma participação mais autônoma dos cidadãos na campanha se deu, por exemplo, com as Casas de Marina. Enquanto isso, a rede social de apoio a Dilma Roussef apostava todas suas cartas nas ferramentas tecnológicas convidando-nos a criar hiper-mega-superlinks. A campanha de Serra na rede, como ficaremos sabendo mais tarde, embrenhou-se por caminhos sombrios.

Somos todos Dilma!
Esse era o quadro geral quando, em meados de agosto, a revista Época/Organizações Globo lançou matéria de capa com o título: “O passado de Dilma – documentos inéditos revelam uma história que ela não gosta de lembrar: seu papel na luta armada contra o regime militar.” Apesar do enorme esforço despendido nas linhas e entrelinhas e apesar das fotos que supostamente atestavam a verdade dos fatos, a matéria não conseguiu comprovar a relação direta da candidata à Presidência da República com atos armados. E ainda que fosse comprovada sua participação em tais atos, não se trataria de resistência contra um poder que se impôs ele próprio com atos armados da maior violência? Hoje, a verdade do poder da ditadura se atualiza dramaticamente por meio da grande mídia quando requenta a tensão da Guerra Fria e explora o medo em todas as suas variações. Ao lançar em sua capa uma foto de Dilma quando presa nos anos 70 – uma jovem que, como tantos outros, acalentava o sonho de transformação de uma sociedade brasileira extremamente desigual por meio da revolução – a revista Época não podia imaginar que as suspeitas que lançava sobre a candidata seriam subvertidas em motivo de orgulho. Internautas se apropriaram de uma imagem do ilustrador Sattu que se encontrava na parte interna da revista e inverteram a acusação “terrorista” na afirmação “guerreira”. Houve por parte dos leitores e eleitores uma percepção e recepção absolutamente positiva da característica “guerreira” atribuída negativamente à Dilma pela revista. Ao produzir camisetas e carregar tal imagem no peito, havia como que uma incorporação de suas qualidades combativas. Antropofagia política. Na internet, além da subversão (da acusação infame de “terrorista” em afirmação potente de “lutadora”) e incorporação desse valores por parte do movimento pró-Dilma, houve uma contaminação virótica que se manifestou na multiplicação de Dilma como avatar nas redes sociais (Twitter, Facebook, Orkut, etc.). Essa multiplicação homogênea na internet era bastante perturbadora pois tornava impossível reconhecer os amigos – “followers” e “following” – por conta da substituição de seus rostos pelo retrato de Dilma. Ainda dominava, nessa relação entre o retrato original e a sua reprodução absolutamente uniforme na rede, o paradigma da política moderna segundo o qual “o corpo do rei representa a nação inteira”.

Essa expressão visual de uma percepção de que, pelas nossas pequenas e grandes lutas do cotidiano, “somos todos um pouco Dilma” marcou o primeiro turno. Ressoava ali também a lembrança de outra mulher importante, não da luta armada e sim da contracultura carioca, que foi Leila Diniz. “Toda mulher é meio Leila Diniz” cantou anos depois Rita Lee na música “Todas as Mulheres do Mundo” (também filme de Domingos de Oliveira de 1966). Naqueles tempos em que a praça era calada nos porões da ditadura, a praia com sua revolução comportamental regada a amor livre e muito palavrão era a única ágora possível. Leila Diniz não pegou em armas mas desafiava os militares com a língua que afiava no Pasquim. Chocava a sociedade conservadora com sua atitude transgressora na explícita abordagem do falo na sua fala. O que diria hoje a desbocada Leila diante da reação da tradicional família brasileira frente aos avanços dos direitos da mulher e dos homossexuais entre outras “minorias”, temas que já constavam no PNDH31 tão combatido? No mínimo, um sonoro que m***** é essa? A reação conservadora foi muito bem trabalhada pela oposição e pela mídia ao passar a idéia de que “nosso” governo teria como estigma “uma crise moral” e que a eleição de Dilma a reforçaria. Fala sério! Quanto mais a mídia desqualificava moralmente Lula e Dilma, mais os qualificava politicamente. Se Leila Diniz é, até hoje, o ícone da revolução comportamental dos anos 60/70, Dilma Roussef representa os avanços a serem realizados nesse novo século. E eis que, no meio da hipocrisia dos costumes, do obscurantismo religioso, do vazio da oposição e da mídia – uma aliança que impedia qualquer debate mais profundo –, o “Somos todos Dilma” se transformou no segundo turno em “Dilma é muitos”.

Dilma é muitos!
As palavras de baixo calão de Leila pareciam ser a única maneira de sair da sinuca em que se encontrava a candidata com relação à questão do aborto. P***! O gozo pleno da vida e a expressão escrachada da liberdade: quando o materialismo com seus processos e o idealismo com seus projetos se contaminam reciprocamente, abre-se uma brecha para potentes trocas entre governantes e governados. A grande mídia tinha se amparado das entrevistas dadas à Folha de São Paulo onde Dilma defendia a descriminalização do aborto (10/2007) e à Marie Claire/Organizações Globo onde o tratava como escolha de foro íntimo e questão de saúde pública, e não caso de polícia (04/2009). Mesmo quando, de fato, pouco importava o que achava sobre o aborto visto que não lhe cabia decidir nada sobre o assunto, Dilma parecia “encurralada” pela própria forma da política de representação constituída pela união das máquinas do partido e do marketing. O uso do aborto numa eleição presidencial onde uma mulher era candidata (tendo sido uma outra mulher, Marina, eliminada no primeiro turno) apontava apenas o mesmo preconceito de sempre contra o uso livre que as mulheres – essas bruxas que menstruam, ovulam, copulam, gozam, engravidam, parem e amamentam… ou abortam! – fazem dos seus corpos e mentes. Tornava-se urgente ir além do paradigma da política moderna da representação com a incorporação por parte de Dilma das forças dos movimentos sociais. Foi então que alguns editores da revista GLOBAL/Brasil2 da Universidade Nômade decidiram participar do movimento pró-Dilma lançando um blog de apoio à candidata do PT. Nascia, no segundo turno, o www.dilmaehmuitos.com.br. A idéia geral era de fazer do blog a nossa praça e a nossa praia incitando simplesmente as pessoas a responder à pergunta: porque voto em Dilma? Capturar as forças dos movimentos das ruas para as redes. A adesão à proposta foi imediata. Contudo, se colaborações sob forma de textos surgiram rapidamente de todos os lados com vigor, as imagens se limitavam aos visuais do marketing oficial e da grande mídia que, por sinal, se refletem tristemente. Ora, se o verbo é o centro da razão ocidental – centro que como veremos mais adiante, segundo Donna Haraway, é masculino, branco e capitalista – a imagem (a imago estaria para o logos como a mulher para o homem: agente de feitiçaria) me pareceu, nesse momento, uma arma a ser mais explorada.


Nessa mesma ocasião, a Universidade Nômade organizava um debate sobre o tema “O devir-mulher do mundo” com Anayansi Brenes, Leonora Corsini, Márcia Aran e Vanessa Santos do Canto. Ao decorrer do debate, ficaram evidentes as tensões entre o feminismo histórico que procurava a construção identitária de um “ser mulher” (que, em alguns momentos empaca numa visão essencialista com o objetivo de afirmar seus direitos) e as perspectivas mais contemporâneas que provocam deslocamentos das fronteiras entre o feminino e o masculino (Leonora abordou a carne queer da multidão, enquanto Márcia apresentou intersexualidade, transexualidade e travestilidade, entre outras sexualidades por vir). A esses aspectos muito específicos de sexualidades tidas como monstruosas se somou a relação da mulher com o espaço público. Historicamente, a mulher que frequenta o espaço público em pé de igualdade com os homens é a prostituta (a puta, como afirma Gabriela Leite da Daspu com orgulho), ou então, uma provocadora de confusão: arruaceira! Vanessa lembrou da relação do homem branco (do senhor de engenho de outrora ao patrão de hoje) e da mulher negra. E lembrou em particular que, no movimento feminista, as mulheres negras eram consideradas quizombeiras (se refere então a um vídeo onde duas moradoras de favela defendem suas casas e suas famílias frente à destruição operada pela Prefeitura do Rio de Janeiro: “Vão derrubar a casa do Eduardo Paes” no blog do Coletivo A-Cidade: http://twurl.nl/5wuvtm) sem maiores considerações sobre sua difícil condição. À resistência sexual soma-se a social e racial. Não é de hoje que o poder chama de baderneiros aqueles que resistem à ordem no espaço público. Faz todo sentido aqui a “des-ordem” que causa a luta da mulher pela ocupação do espaço político de maior relevância do país: o da presidência do Brasil. É como se desafiasse a ordem “natural” das coisas. A subversão da acusação “Dilma terrorista” na afirmação de “Dilmas guerreiras” fazia cada vez mais sentido…

Foi então que “baixou” a Angela Davis, militante americana dos movimentos feminista e negro tais como o Panteras Negras dos anos 70. Angela encantava com seu cabelo black power e foi cantada pelos Rolling Stones (Sweet Black Angel) e por John Lennon e Yoko Ono (Angela), mas Ângela, sobretudo, não tinha papas na língua: Dilma Black Power! Em seguida, foi desenhada a DilmaGirl. Paulo Reis, fã de Dilma, já ficara conhecido como DilmaBoy por manifestar seu apoio à candidata através de uma paródia de um vídeo de Lady Gaga (Telephone) que virou hit na internet. Agora era a vez da Dilma Girl (com seu baseado no canto dos lábios: até os amigos quiseram censurar dizendo que não era o momento de se falar no assunto. Qual seria o momento então?): através dessa imagem, Dilma era identificada com as lutas LGBT por seus direitos e por sua vez a comunidade LGBT se identificava nas lutas de Dilma pela democratização do país. Nesse divertido jogo de reflexos não se tratava, portanto, de essência identitária de natureza alguma – identidade feminina ou masculina, heterossexual ou homossexual: quando gay vira identidade pode ser tão “quadrado” quanto o straight, enquanto o queer indica uma possível linha de fuga – e sim de identificações absolutamente táticas para a batalha eleitoral e para o que vem depois. Assim como foi de natureza tática Lula atribuir a Dilma o papel de “mãe do PAC”. Mas, se alguém aí está precisando de colinho de mãe, é melhor não contar com Dilma porque ela vai estar nas brigas de rua. A brincadeira de briga ficou melhor ainda quando uma garotada começou a fazer suas “dilmas”3, em total clima Tropicalista, e enviou ao blog. Surgiram Dilmas da cultura pop dos quadrinhos, dos desenhos animados e da ficção científica: Dilma Marge Simpson, Dilma South Park, Dilmafalda, Dilma Jedi, Dilma Princesa Leia e Dilma Spock (na mesma reportagem da revista Época que mencionamos, uma companheira de cadeia, Márcia, dizia que “Dilma brincava com uma expressão do Dr. Spock, quando surgia uma proposta considerada estapafúrdia: ‘Esta é uma questão de raciocínio lógico!’”). Uma outra série importante foi a da imagem de Dilma associada às religiões: mais uma vez, não se tratava de opor uma identidade religiosa a outra, e sim de afirmar a tolerância entre todas. Ou melhor ainda, afirmar o nosso sincretismo: religiosidades contra a Religião. Frente ao obscurantismo que procurava amordaçá-la, Dilma precisava afirmar o laicismo do Estado brasileiro dentro de um quadro de livre expressão religiosa (e, de fato, ela confirmou esta posição em seu discurso de vitória). Também foi importante a chegada da Dilma Viva Palestina apoiando com sua kefia a política multilateral do governo Lula nos últimos tempos; da Dilma Maria Bonita pra botar pra correr quem não vê que os nordestinos, com seu trabalho e sua cultura, enriquecem o Brasil; da Dilma Che Guevara com boina estrelada que, não apenas trazia novamente à vida o imaginário dos jovens que nos anos 70 desejaram a transformação da sociedade brasileira, como assinalava que ainda hoje velhas e novas gerações temos heróis e heroínas. Eles (a oposição) não! Ainda ouvimos, em nossos sonhos, a famosa frase do Che: “é preciso endurecer sem perder a ternura jamais”. A urgência não permitiu pintar a boca de Dilma de vermelho…

Ao estabelecer uma brincadeira entre os governados e da futura governante, essas identificações estratégicas (e não identidades essencialistas) abalaram as fronteiras da representação. Aconteceu uma dupla incorporação (ou incorporação de mão dupla): nós incorporamos a qualidade batalhadora da nossa candidata ao governo da nação e ela, candidata, incorporou as nossas. A impressão de totalização em uma nação ou de homogeneização em uma massa da fase “Somos todos Dilma” (primeiro turno) sumiu! Surgiu de forma visível e colorida, na fase “Dilma é muitos” (segundo turno), uma articulação de singularidades em um comum (mesmo que um comum efêmero, ou seja, cuja duração é a de um turno eleitoral). Emergiu momentaneamente uma política da multiplicidade mais do que da representatividade (infelizmente, é política de curta duração: no evento do Circo Voador no Rio de Janeiro apoiado pela revista GLOBAL/Brasil e rede Universidade Nômade com suas “Dilmas”, a praia-praça se reduziu rapidamente a um palco onde os representantes do poder disputaram um fálico microfone, completamente alienados de nós, pobres representados que acabávamos de elegê-los), uma política que acontece mais pela captura aberta nas redes – a possibilidade simultânea de “comer e ser comido” em uma festiva ciber-antropofagia – do que pela organização do partido coerente e puro, e portanto uma política que afirma novas subjetivações também, com suas contradições e impurezas. Esse modo de subjetivação que recorre à hybris é, pois, monstruoso. E, de fato, os monstros estão correndo e comendo soltos na internet! Na cibercultura, existe uma figura de monstro muito presente que é a do Cyborg lançado pela Donna Haraway em seu manifesto. O Cyborg é “uma imagem condensada da imaginação e da realidade material reunidas, e esta união estrutura toda possibilidade de transformação histórica”. Aqui, hoje – Brasil, século XXI – essas condições estão reunidas. Haraway considera a política (e as ciências, a nossa Academia!) como fundada na tradição da dominação masculina, racista e capitalista, na tradição do progresso e na tradição da apropriação da natureza como recurso para as produções da cultura. Todas essas tradições seriam fundadas, por sua vez, na delimitação de fronteiras (em particular aquela entre organismo e máquina) nos territórios da produção, da reprodução e da imaginação. E, portanto, seu manifesto é “um apelo pelo prazer a ser obtido na confusão das fronteiras e pela responsabilidade a ser assumida na sua construção”. Foi esse construtivismo infinitesimal e acontecimental que assumimos em nossa ação pró-Dilma, mantendo-nos abertos ao sabor dos encontros e dos afetos que despertam. No dia 31 de outubro de 2010, foi todo um devir-mulher do Brasil que se expressou com a multidão gritando no melhor estilão Dilma e na maior alegria “eu, eu, eu, o S—- se f****!”

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

“O aborto mal feito é a terceira causa de morte materna”

Entrevista Nalu Faria: “O aborto mal feito é a terceira causa de morte materna”

Participaram: Cecília Luedemann, Gabriela Moncau, Hamilton Octavio de Souza, Lúcia Rodrigues, Otávio Nagoya e Tatiana Merlino. Fotos: Jesus Carlos

Psicóloga, coordenadora geral da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e integrante da Secretaria Nacional da Marcha Mundial das Mulheres, Nalu Faria é um dos nomes mais importantes do Brasil na questão da luta das mulheres. Feminista e anticapitalista, ela discute, nesta entrevista à Caros Amigos, as principais bandeiras do movimento de mulheres no país, como violência doméstica, equiparação salarial, luta contra o machismo e o direito ao aborto. A falta de atendimento médico e hospitalar adequado tem sido responsável pela morte de mais de 500 mulheres por ano no Brasil, devido a abortos clandestinos. .São mortes que poderiam ser evitadas. O assunto é recolocado na perspectiva da luta histórica da sociedade, diferentemente das distorções que sofreu no último processo eleitoral. Vale a pena conferir o que Nalu Faria tem a nos contar.

Hamilton Octavio de Souza – E nome completo.
Nalu Faria – Bom, meu nome é Nalu Faria Silva, eu nasci em Uberaba. Minha mãe morava na roça, e fui para Uberaba só para nascer e voltei. Eu vivi até os 9 anos em um sítio e depois a gente mudou para uma cidadezinha do lado, Água Comprida, onde vivi até terminar, na época, o ginásio.

Tatiana Merlino – Em que ano você nasceu?
Eu nasci em 1958 e vivi lá em Água Comprida até 1974. Aí fui para Uberaba, fiz o colegial, fiz a universidade lá, comecei a militar quando entrei na universidade, em 1978.

Lúcia Rodrigues – Que curso?
Fiz Psicologia. E vim para São Paulo. Tem exatamente 27 anos. Cheguei em São Paulo no dia 21 de outubro de 1983.

Tatiana Merlino – Por que você veio para São Paulo?
Acho que por duas coisas. Uma, porque estava militando em Uberaba. Era militante feminista no movimento estudantil lá. Estava num grupo de mulheres, no Partido dos Trabalhadores, as chamadas fundadoras do PT na cidade. E eu tinha muita vontade de militar. Então, eu achava que Uberaba era pequena. Queria militar e São Paulo aparecia como um bom lugar. Então, isso foi um dos motivos. Militante do PT e formada em Psicologia é difícil o acesso real ao emprego. Então vim para cá.

Tatiana Merlino – Em Uberaba você já começou a militar no movimento de mulheres?
Em Uberaba, a gente comemorou o 8 de março de 1980. Foi o primeiro contato com esse debate. Eu era do curso da Psicologia e lá tínhamos um bom grupo que naquela época estava aberto a esses temas da sexualidade, da discussão das mulheres, éramos briguentas. Nós escutávamos muito: “Pra quê vocês estão estudando se vão casar e ter filhos, pôr o diploma na gaveta, tudo isso”. Então, tinha muitos ataques machistas. O primeiro debate que eu fiz foi sobre aborto, um pouco antes de vir para São Paulo, 1983. Chegando em São Paulo, eu até brincava que tinha muita vontade de militar, mas com o desemprego em 1983, eu costumo dizer que a militância foi a última coisa que eu resolvi. Aqui, fiz várias tentativas de militância até que consegui achar um lugar no movimento de mulheres e, em 1985, eu comecei a militar no movimento de mulheres. E militando de forma cotidiana no PT nos últimos anos, em particular na secretaria de mulheres do PT. Eu fui da secretaria de mulheres do PT até 2004.

Hamilton Octavio de Souza – Antes disso, no final de 1979, a gente tinha aqui em São Paulo alguns jornais do movimento feminista: Nós, Mulheres, Mulherio, Brasil Mulher. Tinha vários grupos feministas. Quando você começou a militar, como era o movimento das mulheres em 1985?
Eu cheguei em um momento bem difícil do movimento de mulheres. Quando eu cheguei, não tinha um espaço de articulação do movimento, porque tinha tido aquilo no período da campanha eleitoral de 1982. A visão dos projetos políticos frente à transição da ditadura marcou dois campos no movimento das mulheres. O setor que era, na época, mais vinculado ao PMDB foi entrando mais para a política institucional, conselhos, e o outro campo de autonomistas, de reflexão, do Nós Mulheres, e outros, se desarticulou. A gente se juntava para organizar o 8 de março, e, justamente nessa época, a gente estava discutindo a importância de ter uma coordenação do movimento de São Paulo para que funcionássemos para além do 8 de março. Mas, a partir de 1986, principalmente, o Encontro Feminista Latino-americano, que teve aqui em São Paulo, em 1985, deu um novo gás, e a partir de 1986 começaram a acontecer várias coisas no movimento de mulheres, para mim, que queria militar com os setores populares, que foi a articulação das mulheres da CUT, que foi em 1986. A gente começa a ir articulando outras coisas nos setores mistos.

Hamilton Octavio de Souza – Quais eram os pontos de luta?
Naquela época, tinha uma agenda forte com relação ao tema que se chamava planejamento familiar. Também tinha os temas da violência e da creche. A gente tinha vindo da campanha por creche, já tinha isso. E um tema genérico de “salário igual para trabalho igual”. Aí, com a Constituinte aparece o tema do aborto. A gente fez um processo de mobilização para colher 30 mil assinaturas, para entrar com uma emenda na Constituinte. Foi o momento que a gente colocou mais a cara na rua, com o tema do aborto. Conseguimos as 30 mil assinaturas e o que nós conseguimos na Constituinte, que o direito à vida, na Constituição, é desde o nascimento.

Hamilton Octavio de Souza – A diferença era entre a concepção e o nascimento?
No movimento das mulheres tinha prevalecido essa visão de não colocar o tema do aborto, porque se pusesse, ia apanhar. Como no anteprojeto vem essa questão do direito à vida desde a concepção, exige-se uma reação do movimento e aí aparece a emenda, a negociação, a mudança do artigo sobre o direito à vida. Depois começa a haver uma articulação das mulheres negras, com um primeiro encontro em 1988. Reaparece o grupo de mulheres lésbicas. A gente teve um Encontro Feminista em 1989, aqui em São Paulo, o 10º Encontro Nacional Feminista. Foi um marco: primeiro a gente saiu de lá com a ideia de fazer uma campanha nacional pela legalização do aborto, que era uma polêmica. Teve debates, oficinas amplas sobre a questão lésbica, do partido. Tinha coisas que também que, por um motivo ou por outro, no movimento feminista eram meio tabu, o partido não entrava, porque era movimento autônomo. Aí, depois nos anos 1990, o movimento de mulheres cai num processo de institucionalização, que a gente chama de aumento das Ongs, um momento que o movimento acompanha muito as agendas da ONU, que é essa idéia do neoliberalismo, débâcle mesmo na discussão no movimento mais de esquerda.

Hamilton Octavio de Souza – Por que afetou? Em que aspecto?
Porque começa com um discurso no movimento de mulheres do impacto da globalização, do neoliberalismo. Primeiro uma ideia de que tinha perdido o papel dos Estados nacionais, que era uma agenda global da ONU e deveria inserir as questões dos direitos ali. Então, isso foi uma coisa que prevaleceu na América Latina e que significou uma profissionalização do movimento das mulheres, as pessoas começam a participar das conferências da ONU. Nossa avaliação, da Sempre Viva Organização Feminista (SOF), setor em que milito na Marcha Mundial das Mulheres (MMM) é que, embora não tenha grandes vitórias para o movimento de mulheres, na segunda metade dos anos 1990, as feministas que investiram nesse processo manejaram com um discurso triunfalista, de dizer que estava alcançando as vitórias; por exemplo, na Conferência do Cairo, que foi a conferência sobre população, entrou o tema do aborto, pela primeira vez, em 1994. Só no final dos anos 1990 que a gente consegue recuperar o fôlego, organizando um setor mais crítico ao neoliberalismo. Aqui no Brasil, nós identificamos como duas coisas: primeira, a vinda da campanha da Marcha Mundial das Mulheres para cá…

Tatiana Merlino – Como a campanha da Marcha chegou?
As mulheres do Quebec começaram a articular a Marcha. Elas tinham feito lá, em 1995, Pão e Rosas, já depois da assinatura do NAFTA, percebendo que ele ia trazer muitos retrocessos para as mulheres. E elas fizeram uma campanha, uma marcha mesmo, de 200 quilômetros e as principais reivindicações tinham a ver com o aumento do salário mínimo, coisas com relação à migração, a economia solidária, os direitos e documentação das imigrantes. E lá surgiu a idéia de ter uma marcha internacional em 2000. Aí elas começaram a articular e criaram essa coisa da internet para a gente aderir. E quem chamou a primeira reunião aqui para definir quem ia para o encontro internacional em 1998, onde a gente definiria a plataforma da marcha, foi a própria CUT, o setor de mulheres. Ela começou como uma campanha, em 2000, contra a pobreza e a violência. Fizemos a marcha em 2000, e teve grande impacto, já desde o seu lançamento, porque era algo articulado, uma campanha nacional que era também internacional. E, na avaliação da marcha, que foi lá em Nova York, depois de 17 de outubro, teve a proposta de continuidade, como um movimento permanente. Foram 163 países que participaram da primeira [marcha]. Hoje nós estamos em 70 países. Então, começamos a articular a marcha como um movimento permanente. A gente se vinculou muito ao processo do Fórum Social Mundial. Fizemos duas ações que ajudaram muito a articular a marcha aqui: o nosso envolvimento na campanha contra a Alca, e a campanha pela valorização do salário mínimo. Outra coisa que foi forte desde o início na marcha foi conseguir articular um movimento que junta mulheres da cidade e do campo.

Hamilton Octavio de Souza – Quais são os pontos de união entre as mulheres do campo e as mulheres da cidade? O que tem em comum de luta?
A gente está vendo mais pontos que unificam. No caso das trabalhadoras rurais, no início do ano 2000, depois de ter conquistado o direito à aposentadoria, o reconhecimento como trabalhadora rural, elas estavam cada vez mais reivindicando políticas em relação, vamos dizer assim genericamente, ao mundo do trabalho. Não só a posse da terra, crédito, e outras coisas que diferencia de movimento para movimento, mas tem uma pauta comum, aí. Mas, é impressionante como, por exemplo, para a trabalhadora rural também toca o tema da violência, o tema da saúde. E, na medida em que a gente está construindo um movimento que olha para esse geral do modelo de desenvolvimento, do modelo de sociedade, os pontos em comum são cada vez maiores. Então, ter uma opinião sobre a política econômica, ter uma opinião sobre a política previdenciária são coisas que nos juntam. A gente tem tentado mostrar que não se constrói soberania alimentar se não, por exemplo, se altera o que é a indústria da alimentação. Os temas que antes não pareciam ter tanto vínculo entre a mulher urbana e a rural, a gente vai mostrando como as coisas estão vinculadas.

Lúcia Rodrigues – Hoje, dá para se dizer que existe uma bandeira das mulheres?
Este é um dos problemas que nós temos no movimento de mulheres. Sempre foi difícil priorizar. O movimento de mulheres, depois foi se organizando muito por temas. Então, tinha a turma que trabalhava o tema da violência, turma da saúde, depois da moradia, sindical. Então, o leque foi se abrindo muito. E isso é uma das dificuldades que a gente tem de construir processos de articulação e mobilização mais ampla, porque tem uma plataforma muito ampla que não consegue definir prioridades por um período. Então, é um movimento multifacetado. Na verdade, nós não somos o movimento de mulheres, somos um setor do movimento de mulheres, no nosso caso da Marcha.

Para ler a entrevista completa e outras matérias confira a edição de novembro da revista Caros Amigos, já nas bancas, ou clique aqui e compre a versão digital da Caros Amigos.