quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

No continuum da violência por Vandana Shiva



Vandana Shiva no Rincão Gaia

Vandana Shiva no Rincão Gaia/RS. Foto Cíntia Barenho/CEA
Até 16 de dezembro de 2012, Jyoti Singh Pandey era apenas uma estudante universitária de 23 anos a caminho de casa após uma sessão de cinema em Nova Délhi. Naquela noite, porém, foram-lhe brutalmente roubados o próprio corpo, a identidade, os direitos humanos. Estuprada por seis homens em um ônibus em movimento, com requintes sórdidos de tortura com uma barra de metal, a jovem indiana resistiu por 13 dias após a agressão – e morreu no dia 29 de dezembro. A Índia tremeu com enérgicas manifestações e protestos que se alastraram por diversas cidades do país.
Nessa semana, cinco homens foram acusados oficialmente perante a Justiça indiana – três se declararam inocentes. O sexto suspeito é um adolescente de 17 anos, que será julgado em uma corte juvenil. Enquanto os julgamentos se desenrolam a portas fechadas, resta a lembrança de Jyoti Singh Pandey como símbolo para as milhares de mulheres violentadas diariamente na Índia. “Jyoti detonou uma revolução social”, diz a filósofa indiana Vandana Shiva.
Nascida em Dehradum, Vandana colaborou com organizações ambientalistas nos quatro cantos do mundo – África, Ásia, Américas e Europa. Atualmente vive em Nova Délhi, onde lidera o Research Foundation for Science, Technology and Ecology. Autora deStaying Alive: Women, Ecology and Survival in India (1988), Biopiracy (1997) e Water Wars (2002), entre outros, a filósofa mescla movimentos políticos alternativos, ideais ambientalistas, críticas econômicas, biotecnologia e bioética. Desse amálgama teórico saem suas principais ideias para defender os direitos das mulheres mundo afora.
“Se permaneço firme hoje é porque antes de mim outras pessoas lutaram contra a discriminação contra as mulheres”, diz. “Meu avô iniciou a primeira escola para garotas na área rural de Uttar Pradesh. E queria transformá-la em uma faculdade. No estilo do Mahatma Gandhi, ele fez greve de fome para que a universidade fosse reconhecida pelo governo. Morreu nesse sacrifício. Um dia depois de sua morte, a instituição conquistou status de faculdade”, ela conta ao Aliás. “E minha mãe e meu pai lutaram contra a discriminação de castas. Assim adotaram o nome neutro ‘Shiva’ para renunciar à identidade de casta deles. Minha mãe viveu uma vida tão independente quanto meu pai. Foi um exemplo que tornou a igualdade de gêneros uma condição vital para mim”, diz.
Ecofeminista premiada com o Right Livelihood Award – considerado o Nobel da Paz alternativo –, Vandana escreveu um ensaio em tributo a Jyoti Singh Pandey no dia 29 de dezembro. Para pensar a questão feminina (e a brutalidade da violência contra as mulheres no país), a autora extrapola as fronteiras culturais e leva a discussão aos campos da economia e da política. A seguir, trechos do ensaio.
Perversas tradições
“A violência contra as mulheres é tão antiga quanto o patriarcalismo na Índia. O patriarcalismo tradicional estruturou nossas visões de mundo e nossas mentes. Moldou o universo sociocultural indiano na dominação sobre as mulheres, negando-lhes a humanidade e o direito à igualdade. No entanto, essa dominação se intensificou e se tornou mais perversa recentemente, tomando formas mais brutais, como a morte de Jyoti Singh Pandey, em Nova Délhi, e o suicídio de uma garota de 17 anos, também vítima de estupro coletivo, em Chandigarh. Casos de estupro e violência contra as mulheres dispararam nos últimos anos. O National Crime Records Bureau registrou 10.068 casos de estupro em 1990, número que saltou para 16.496 em 2000. Em 2011, foram 24.206 estupros – um incrível aumento de 873% desde 1971, quando a instituição começou a registrar esses casos. Assim, Nova Délhi emergiu como a capital do estupro na Índia, respondendo por 25% dessas ocorrências. Até que se faça justiça por nossas filhas e nossas irmãs violentadas, o movimento contra a violência não pode parar. E, enquanto intensificamos nossa luta por justiça, também precisamos questionar: Por que os casos de estupro cresceram 240% desde 1990, época em que as novas políticas econômicas foram introduzidas no país? Há uma relação entre os crimes contra as mulheres (mais intensos, mais brutais) e a economia (imposta, injusta e insustentável)? Acredito que sim.
O auge da intempérie
“Não estou sugerindo que a violência contra as mulheres comece com as políticas econômicas neoliberais. Estou consciente do preconceito de gêneros arraigado na sociedade indiana tradicional. Permaneço firme hoje, pois, antes de mim, outras pessoas lutaram contra as exclusões contra mulheres e crianças. Meu avô sacrificou sua vida pela igualdade feminina. Minha mãe foi uma ‘feminista’ antes de a palavra sequer existir. Mas quero dizer que a violência contra as mulheres tomou uma nova e mais perversa forma, a partir do cruzamento de duas linhas: as estruturas patriarcais tradicionais e as estruturas capitalistas emergentes. Precisamos pensar nas relações entre a violência do sistema econômico e a violência contra as mulheres. Para ilustrar: intempéries sempre aconteceram. Mas como mostram o superciclone Orissa, os ciclones Nargis e Aila, os furacões Katrina e Sandy, a intensidade e a frequência desses desastres se transformaram com as mudanças climáticas. Na mesma linha, nossa sociedade sempre discriminou crianças meninas. Mas e a epidemia de feticídio feminino? E o desaparecimento de 30 milhões de garotas nem nascidas? Levaram essa discriminação a novas proporções. À violência mais brutal e mais perversa – e relacionada aos processos alavancados pelo modelo econômico.
Dois pesos, duas medidas
“O modelo econômico míope, com foco no ‘crescimento’, desconsidera a contribuição das mulheres para a economia. Quanto mais argumenta, ad nauseum, sobre o ‘crescimento inclusivo’ e ‘inclusão financeira’, mais o governo exclui as contribuições femininas para a economia e a sociedade. Isso porque, de acordo com os modelos econômicos patriarcais, a produção para subsistência é considerada ‘não produção’. Do valor em ‘não valor’, do trabalho em ‘não trabalho’, do conhecimento em ‘não conhecimento’, essas transformações são engendradas pelo mais poderoso número que dita nossas vidas: o produto interno bruto, uma ideia patriarcal – que muitos comentaristas passaram a chamar de ‘problema interno bruto’. Medidas assim se ancoram na ideia que se os produtores consomem o que eles mesmos produzem… Eles não produzem nada, de fato, porque ficam fora das fronteiras da produção. Esses modelos são construções políticas que, na sua própria dinâmica, excluem os ciclos de produção regenerativa e renovável. Por isso, todas as mulheres que produzem para sustentar suas famílias e crianças, suas comunidades, são tratadas como ‘não produtivas’ e ‘inativas’ economicamente. Quando a economia é confinada ao mercado, a economia autossustentável é vista como uma lacuna. A desvalorização do trabalho das mulheres é o resultado natural de um modelo de produção construído pelo patriarcalismo capitalista. Ao se restringir aos valores da economia de mercado, esse modelo ignora a importância (e o valor econômico) de duas esferas vitais para a sobrevivência humana: a economia sustentável e a economia da natureza. Nesses modelos alternativos, o valor econômico mede como são preservadas a vida humana e a vida na Terra. Isto é, nesse sistema, a moeda é a vida – não o dinheiro ou o preço de mercado.
A cultura do estupro
“Esse modelo patriarcal distancia as mulheres das fontes naturais das quais dependem – a terra, a floresta, as sementes e a biodiversidade. Reformas econômicas ancoradas na ideia de crescimento ilimitado num mundo limitado só podem ser mantidas com os poderosos arrebatando recursos dos vulneráveis. O ‘roubo’ de recursos, essencial para o tal crescimento, cria uma cultura do estupro: o estupro da Terra e das mulheres. Esse crescimento só é ‘inclusivo’ por incluir mais e mais números nesses círculos de violência. Noutras vezes, destaquei repetidamente que o estupro da Terra e o estupro das mulheres estão intimamente relacionados, tanto metaforicamente quanto materialmente. Primeiro, por moldar visões de mundo. Segundo, por moldar a vida cotidiana das mulheres. Uma vez vulneráveis economicamente, as mulheres se tornam mais vulneráveis a outras formas de violência, como a agressão sexual. Isso nós podemos observar durante uma série de audiências públicas sobre o impacto das reformas econômicas nas mulheres. Esses encontros foram organizados pela National Comission on Women e pela Research Foundation for Science, Technology and Ecology.
Na raiz do abismo
“Ainda sobre as relações entre a violência e o modelo econômico. As reformas nos levaram à subversão da democracia e à privatização do governo. O governo comenta a economia como se nada tivesse a ver com a política e o poder. Ora, os sistemas econômicos influenciam os sistemas políticos. É imposto um modelo econômico moldado de acordo com interesses políticos de uma classe e de um gênero em particular. É uma convergência de poderes econômicos e políticos que agravam as desigualdades e acirram a distância entre a classe política e o desejo da sociedade que, teoricamente, eles deveriam representar. Isso está na raiz da ruptura entre políticos e a sociedade, tal como vivenciamos durante os protestos desde o estupro coletivo de Nova Délhi. Pior ainda, temos uma classe política alienada que teme seus próprios cidadãos. Isso justifica o crescente uso da força policial para esmagar manifestações civis não violentas, como testemunhamos em Délhi. Ou na tortura de Soni Sori, em Bastar (presa em 2011, a ativista disse que foi torturada e violentada sexualmente por policiais de Chhattisgarh). Ou na prisão de Dayamani Barla, em Jhakhand (presa em 2012, a jornalista foi acusada de perturbar a lei e a ordem ao liderar protestos em anos anteriores). Ou nas milhares de agressões a comunidades que lutam contra a usina nuclear em Kudankulam. Por isso, os políticos se cercam de seguranças VIP, desviando a polícia de seus deveres importantes, como proteger mulheres e cidadãos comuns.
Commodity geral
“Além disso, o modelo econômico atual transforma tudo em commodities. Tudo, incluindo as mulheres. As sementes, a terra, a comida, as mulheres, as crianças. Alavancado pela liberalização econômica, tudo se transforma em commodities. Isso degrada os valores sociais, acirra o patriarcalismo e intensifica a violência contra as mulheres. Nós paramos uma reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle, com o slogan: ‘Nosso mundo não está à venda’. Essa é a ideia. Sistemas econômicos influenciam valores culturais e sociais. E uma economia de commodities cria uma cultura de commodities, onde tudo tem um preço. E nada tem valor.
Entre quereres e poderes
“Assim, a cultura do estupro é um sintoma das mudanças decorrentes da economia neoliberal. Precisamos de auditorias sociais para as políticas econômicas em nossos tempos. Se tivéssemos uma auditoria sobre a corporativização do setor de sementes, 270 mil fazendeiros não teriam sido empurrados ao suicídio na Índia. Se tivéssemos uma auditoria sobre a corporativização da agricultura, não teríamos um em quatro indianos faminto, uma em três mulheres mal nutrida, uma em duas crianças definhando devido a severa desnutrição. Talvez assim, a Índia não fosse a ‘república da fome’, tal como escrevera Utsa Patnaik (economista marxista da Jawaharlal Nehru University). Vítima do estupro coletivo em Nova Délhi, Jyoti Singh Pandey detonou uma revolução social. Uma revolução que devemos apoiar, aprofundar, ampliar. Devemos exigir rápida e efetiva justiça para as mulheres, com leis novas e tribunais mais ágeis para condenar os responsáveis por esses crimes. Devemos ver o continuum das diferentes formas de violência contras as mulheres: o feticídio feminino, a exclusão econômica, as agressões sexuais. Precisamos dar continuidade ao movimento por reformas sociais para garantir a igualdade e a segurança das mulheres. Isso deve ser construído nos pilares fundados com o movimento de independência e o movimento feminista nos últimos 50 anos. E, enquanto fazemos tudo isso, precisamos mudar o paradigma em vigor. Economia e sociedade não estão isoladas. As reformas nesses dois campos não podem mais ficar separadas. Para dar fim à violência contra as mulheres, também precisamos mudar. Mudar de uma economia capitalista violenta para economias sustentáveis e pacíficas, que respeitem as mulheres e, no limite, a própria Terra.”

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Algumas linhas sobre a História do Vestuário, por Paula Grassi *


1914

Férias da universidade possibilitam a leitura de tantos escritos. Aqueles que a rotina cotidiana faz adiar o desejo de novos (ou já conhecidos) mundos. E há poucas semanas o livro escolhido foi um clássico da História do Vestuário A roupa e a Moda: uma história concisa do James Laver.

O gosto pela História do Traje se associa à busca pela compreensão do corpo (em especial da mulher) como uma linguagem e a criação sobre ele, seja de imagens, discursos, atributos, formas de admirá-lo, negá-lo, de representá-lo em determinado tempo e espaço. Elementos alterados através de marcadores sociais e políticos, como a raça, gênero e classe social.

Em A roupa e a Moda: uma história concisa, Laver descreve os principais momentos, ao longo da História, do vestuário no(do) mundo ocidental, detalhando suas formas e materiais. O foco no ocidente é explícito. O oriente é apresentado apenas como influência ao traje europeu. Territórios como a África e a América Latina são despercebidos. Viés da história eurocêntrico.

Outro aspecto relevante da obra é o foco no vestuário das classes superiores economicamente. Pouco se apresenta o traje daqueles/as com menor poder aquisitivo ou se problematiza o papel político e social da roupa. Ora, o traje é ligado a um determinado tempo e espaço, assim conectado a um contexto sócio-político e econômico. Assim, suas cores e tecidos expressam uma posição social (HOLLANDER, 1996, p. 14). Na metade do século XIX, por exemplo, a saia de uma mulher rica era tão volumosa que era necessário a ajuda de um criado para vesti-la e despi-la. Deste modo uma das finalidades do uso desse modelo feminino era exaltar o alto status social, pois remetia ao poder de contratar um séqüito de criados (LAVER, 1990, p. 172).



As cinco ordens de perucas,

de Willian Hogarth, 1761

O livro também cita fatos históricos como momentos que interferiram o cotidiano, e no caso na moda também. Na Revolução Francesa, por exemplo o rompimento com uma “tendência” aristocrática: “Como todos os grandes levantes populares, ela (Revolução Francesa) teve um efeito profundo tanto nas roupas masculinas quanto nas femininas. Os trajes do Antigo Regime foram erradicados” (LAVER, 1990, p. 148). O uso das perucas a passava a ser abandonado.

A distinção entre o traje masculino e feminino, e vice-versa, é constantemente exposta. A sexualidade é “visualizada nos modos de vestir” (HOLLANDER, 1996, p. 18). E o traje masculino como ideal, forneceu por muito tempo o padrão de elegância e extravagância desejado.



Propaganda

de anquinhas,

1870 e 1880

Ana Hollander em O sexo e as roupas: a evolução do traje moderno afirma que “o vestuário masculino e feminino (...) ilustra como as pessoas querem que a relação entre homens e mulheres seja” (p. 18). O ideal dessa relação está ligado diretamente aos elementos tradicionais da construção de gênero para definir o que é ser Mulher e o que é ser Homem. À divisão sexual do trabalho. No século XIX, com a ascensão da burguesia:

O próspero homem de negócios esperava duas coisas da esposa: primeiro que fosse um modelo de virtudes domésticas e segundo que não fizesse nada. Sua ociosidade total era a marca do status social do marido. Olhava-se com desprezo qualquer tipo de trabalho, e as roupas que refletiam essas atitudes eram extremamente restritivas (LAVER, 1990, p. 170).

A linha fundamental da roupa feminina de grande parte do século foi a saia volumosa com o uso de anáguas e anquinhas que impedia as mulheres de realizar qualquer atividade (LAVER, 1990, p. 170). Quando houve uma tentativa do uso de calças pelas mulheres, a rejeição e a censura explodiram. Para o homem deste período tal atitude era um “ataque ultrajante à sua posição privilegiada” (LAVER, 1990, p. 182).

Punch, o espelho fiel da opinião da classe média do século XIX publicou dezenas de charges enfatizando as conseqüências de uma possível revolução sexual, um mundo em que homens tímidos estavam totalmente submissos às suas mulheres que usavam calças. “Como o marido, a mulher será; um vestido ele terá de usar” (LAVER, 1990, p. 183).

E quando a saia perdeu as anáguas e foi encurtada, as agitações também foram inevitáveis. Em 1925 “o arcebispo de Nápoles chegando a anunciar que o recém – ocorrido terremoto em Amalfi se devia à ira de Deus contra uma saia que apenas cobria os joelhos” (LAVER, 1990, p. 230). Nos Estados Unidos foram criados projetos de lei para proibir o uso de saias curtas, prevendo multa e prisão para as mulheres que usassem nas ruas.

Situações como essas e tantas outras que o livro descreve, traduzem a ligação de padrões de moda, beleza e comportamento para a mulher com a sua construção tradicional. Isto é, baseada no espaço privado do lar, no desejo do marido/namorado e na figura de ser mãe. Construção que insiste em perpetuar-se, criando novas formas de segregação seja na objetividade como na subjetividade.



André Courrèges - 1968

Outra constatação que chama atenção na história do Traje através do escrito de Laver, é conexão da moda com a juventude a partir da década de 50, especialmente nos anos 60. A efervescência no campo das artes, seja a música, a literatura, o cinema ou/e o teatro, gera o desejo de ruptura também no mundo das roupas, além do tratamento ao corpo, como um veículo de criação.

Por fim a escrita e publicação do livro impede o conhecimento da roupa nesse início do século XIX. A roupa e a moda que hoje, como afirma Carlos Gardin (2008), estão ligadas fortemente ao sistema capitalista de consumo ao criar padrões de comportamento vendáveis e deixar de lado o campo da criação e arte.
* Paulinha Grassi é militante feminista da Marcha Mundial das Mulheres, Caxias do Sul

Referências Bibliográficas

GARDIN, Carlos. O corpo mídia: modos e moda. In: OLIVEIRA, Ana Claudia de; CASTILHO, Kathia. Corpo e moda: por uma compreensão do contemporâneo. Barueri, SP: Estação das Letras e Cores, 2008.

HOLLANDER, Anne. O sexo e as roupas: a evolução do traje moderno. Rio de Janeiro:Rocco, 1996.

LAVER, James. A roupa e a moda. Uma História Concisa. São Paulo: Companhia das Letras, 1990

A vida das outras, por Alana Moraes



O recente caso noticiado sobre o estupro coletivo sofrido por uma jovem indiana de 23 anos parece ter comovido de maneira bastante intensa a opinião pública internacional. É difícil não se abalar com o caso e todos os requintes de violência encontrados no corpo da jovem estudante que bravamente lutou por sua vida durante duas semanas. O estupro talvez seja a manifestação mais drástica da violência machista, uma violação da integridade do corpo e da autonomia que pretende anunciar de maneira brutal, entre outras coisas, o fato de que a mulher não tem possibilidade de escolhas sobre o seu próprio corpo, o fato de que o corpo da mulher é, no limite, inscrito na ordem na sujeição, da subordinação e alienação dos próprios desejos.
india
O que me incomodou, no entanto foram algumas análises produzidas sobre o caso indiano. No momento em que eu acompanhava um noticiário um amigo ao lado me questionou: “mas porque será que essas coisas acontecem na Índia?”. Sua pergunta na verdade revelava o fundo de toda a repercussão dada ao caso: Por que será que ainda pensamos que o estupro só acontece na vida das outras, em uma realidade distante e incompreensível? Certamente porque temos medo de encarar o fato de que a prática do estupro está intimamente vinculada com a reprodução cotidiana do machismo na tentativa de domesticação violenta dos nossos corpos seja na Índia ou na Suécia e porque o estupro traz consigo uma outra face dessa violência que é o silêncio de suas vítimas, extremamente vulneráveis e que temem o sofrimento da exposição pública.

A prática do estupro desmancha as fronteiras entre o norte e o sul, entre democracias e ditaduras, ricas e pobres, entre nós e as outras e tudo que ameaça as fronteiras é temerário para uma sociedade ocidental cujos pilares se constroem a partir das grandes divisões.

Fundamentalmente os casos de estupros só aparecem quando a mulher violentada é a mulher do outro, seja a esposa ou a filha: os estupros domésticos ainda são cotidianamente silenciados porque de certa forma estão inscritos dentro do direito legitimo de posse do homem que agride o que supostamente é seu de direito.

Neste último sábado o caderno Prosa e Verso do jornal O globo publicou um artigo de Manu Joseph, editor de uma revista semanal indiana, no qual ele discutia o problema dos casos recorrentes de estupro na Índia. Para resumir o autor defende a idéia de que a violência praticada pela ação do estupro é produto de uma “cultura tradicional, camponesa e atrasada”: “Porque a Índia não cidades de verdade? Porque as cidades necessitam de uma massa critica de pessoas liberais, ou pelo menos de uma elite, para ser um pouco independente, livre de suas raízes culturais, familiares e comunitárias.” Uma outra reportagem produzida pelo NYT e reproduzida pelo portal do IG conclui que “Os maus-tratos e abuso contra mulheres são um grande problema especialmente em Nova Délhi e no norte da Índia. A mentalidade social patriarcal, uma cultura de abuso do poder político, um desdém generalizado em relação à legislação, uma força policial em grande parte insensível e uma população de migrantes sem raízes, sem lei, são apenas algumas das razões.”

O debate poderia ser longo. Poderia começar, por exemplo, com o questionamento de que o estupro é fruto de uma “cultura” seja ela de qualquer tipo. Culturalizar o estupro é, sobretudo um erro político: é tentar explicar um pratica de violência ancorada nos valores de uma sociedade machista e patriarcal em uma gramática particularista. Ou se abandona de vez a explicação “cultural” do estupro ou é preciso admitir que o estupro é uma cultura universal, masculina e patriarcal, não esquecendo que o país – segundo a ONU – que os maiores índices de estupros registrados em 2010, por exemplo, estão localizados nos Estados Unidos.india-1

Uma coisa assustadora acontece quando tentamos compreender o estupro em uma chave cultural, tradicional e comunitária: acabamos por invisibilizar o estupro enquanto pratica recorrente de nossa sociedade supostamente “moderna”. Na minha cidade, por exemplo, o Rio de Janeiro, os índices de estupro estão cada vez mais alarmantes. Em 2010 os casos aumentaram em 20%, a mesma taxa de crescimento observada na Bélgica também. Em São Paulo, essa pequena cidade tradicional, em média, 11 mulheres são estupradas por dia. Dados levantados pela Fundação Perseu Abramo revelam que entre as mulheres entrevistadas em São Paulo e Pernambuco, aproximadamente uma em cada três diz ter sofrido violência.

Vivemos em tempos difíceis onde o senso comum dominante, reforçado pela “opinião pública” insiste em consolidar uma idéia de que a igualdade entre homens e mulheres já foi alcançada, de que a luta feminista é um tanto quanto fora de moda nos países “modernos” ocidentais. Ainda que a prática do estupro por vezes seja corroborada por crenças religiosas fundamentalistas, ainda que a violência contra mulher possua nuances diferenciadas e significadas de diferentes formas ela ainda é permanente e transcultural, ainda faz parte da dominação machista sob qual todas nós vivemos. Ela ainda é violência e opressão sexista: de Bruxelas à Nova Deli. É assustador para o projeto de civilização ocidental pensar que a violação dos corpos femininos a partir do uso da força seja uma pratica constitutiva de nossas sociedades.

Corrermos o risco de que a “cultura” seja entendida como algo imutável e de que a pratica da violação sexual seja etnocentricamente atribuída aos povos

“não-modernos”, como mais um elemento pitoresco de suas praticas. Ao contrário: ou aceitamos que a violência machista e patriarcal que viola nossos corpos e nosso direito de ser gente é moderna, porque é peça central da engrenagem da sociedade desigual em que vivemos ou ficamos com a suspeita de que “jamais fomos modernos” já que temos que conviver cotidianamente com praticas brutais de violência e opressão.

1 bilhão de mulheres, ou uma em cada três do planeta, já foram espancadas, forçadas a ter relações sexuais ou submetidas a algum outro tipo de violência. A luta feminista precisa ser mais do que nunca uma luta internacional porque acreditamos mais na cultura da política – na cultura militante do convencimento de nossas idéias – do que na política da cultura que insiste em embalsamar as práticas machistas como se estas pertencessem à um outro mundo que não o nosso, à um outro tempo que não o nosso.

Continuaremos em marcha até que todas sejamos livres! Por nós, por Jyoti Singh Pandey, por todas.

*Alana Moraes é militante da Marcha Mundial das Mulheres no Rio de Janeiro.

sábado, 5 de janeiro de 2013

O Fórum Social Mundial de luta e de resistência das Mulheres


 Outro mundo só é possível com feminismo

 
O Fórum Social Mundial surge no início dos anos 2000 como espaço da sociedade civil organizada em luta contra a ofensiva neoliberal e a globalização. É fruto dos movimentos antiglobalização, anticapitalista e anti-imperialistas para ser um espaço de convergência democrática de ideias e reflexões, aprofundamento de análises, e formulação de propostas, troca de experiências e articulação de movimentos sociais, redes, ONGs e outras organizações da sociedade civil.
 
Após o primeiro encontro mundial, realizado em 2001, se configurou como um processo permanente de busca e construção de alternativas às políticas neoliberais. Esta definição está na Carta de Princípios* , principal documento do FSM.  Tal documento explicita o caráter do FSM quando afirma ser esse  “um espaço aberto de encontro para o aprofundamento da reflexão, o debate democrático de ideias, a formulação de propostas, a troca livre de experiências e a articulação para ações eficazes, de entidades e movimentos da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo, e estão empenhadas na construção de uma sociedade planetária orientada a uma relação fecunda entre os seres humanos e destes com a Terra”.
 
O Fórum Social Mundial não é uma entidade nem uma organização e se caracteriza também pela pluralidade e pela diversidade, tendo um caráter não confessional, não governamental e não partidário. Ele se propõe a facilitar a articulação, de forma descentralizada e em rede, de entidades e movimentos engajados em ações concretas, do nível local ao internacional, pela construção de um outro mundo, mas não pretende ser uma instância representativa da sociedade civil mundial. 
 
A Marcha Mundial das Mulheres e o Fórum Social Mundial

Nossa constituição está intimamente ligada ao FSM, pois já na primeira edição em 2001, estivemos presentes com uma delegação de mulheres de vinte países. Em 2002, pautamos no FSM a violência contra as mulheres e como o machismo e o sexismo se expressam no cotidiano de cada uma de nós. Juntamente com a Rede Mulheres Transformando a Economia debatemos e formamos novas estratégias para combater a aliança perversa e tão nociva à vida das mulheres que é a aliança do capitalismo com o patriarcado. E assim seguiu nossa participação, sempre pautada na luta anticapitalista, antiglobalização e na busca de reforçar os laços de solidariedade com os demais movimentos que acreditavam que um outro mundo é possível.

Atuamos no Fórum Social Mundial desde o início por ser um espaço privilegiado para levar a cabo nosso projeto de mudar o mundo e para estabelecer alianças com outros movimentos sociais. Somos um movimento antiglobalização e antipatriarcal, e tornamos públicas nossas resistências e alternativas através de mobilizações de rua, da educação popular, da produção de conhecimento e da construção coletiva de novas formas de expressão.

Conectamos as feministas de diferentes partes do mundo que acreditam na necessidade de se organizarem localmente e atuar juntas para combater as realidades globais, que são o patriarcado, imperialismo, o machismo, a lesbofobia, o racismo, o neoliberalismo e o neoconservadorismo. 

A história dos movimentos sociais está entrelaçada com a do Fórum Social Mundial (FSM)

O fortalecimento dos movimentos que encontram seus pares em outras partes do mundo e a articulação ao redor de agendas comuns, como foi o caso da oposição à guerra e ao imperialismo, são frequentemente afirmadas como resultados positivos do FSM. Mas além disto, uma das principais contribuições do FSM tem sido mudar o ambiente onde são realizadas as ações e os debates políticos além de promover uma nova aproximação entre os diversos campos dos movimentos sociais, construindo um terreno intermediário. Este novo território evitou (provavelmente) o isolamento de alguns destes movimentos e ampliou a agenda política de outros. 

Foi com esse espírito que participamos do Fórum Social Temático, Crise Capitalista Justiça Social e Ambiental preparatório à Cúpula dos Povos na Rio + 20 no início desse ano. Estivemos presentes no Rio de Janeiro durante a Cúpula dos Povos reafirmando nossa luta contra o capitalismo verde e a favor da soberania alimentar, e a garantia dos bens comuns com a água e a terra.
 
E dessa forma que, a Coordenação dos Movimentos Sociais do RS e Nacional junto com vários movimentos pró Palestina Livre, reuniram esforços na construção, em Porto Alegre, do FSM Palestina Livre, ocorrido no mês de novembro último, denunciando o imperialismo do Estado de Israel e buscando ampliar a solidariedade internacional com o povo palestino. Nós da Marcha Mundial das Mulheres estivemos presentes desde o início dessa construção na afirmação da Soberania da Palestina como um tema permanente na nossa luta e elaborações.

Estaremos participando do Fórum Social Mundial 2013, entre 26 e 30 de março, em Tunís, na Tunísia.  Como sabemos, em anos pares se realiza em Porto Alegre o Fórum Social Mundial Temático, abordando sempre um tema de importância internacional e que esteja dentro dos princípios do FSM. Nos anos ímpares, acontecem as edições centralizadas, sempre em um continente diferente e em países onde se faça necessário o fortalecimento da solidariedade internacional, como nesse momento na Tunísia. 

Os Movimentos Sociais podem se reconhecer mais e se unir uns aos outros se o ritmo do Fórum não for um obstáculo à ação em si. A experiência do Dia de Ação Global foi expressiva e nos leva a propor claramente uma alternância entre FSM local, temático/regional e internacional, como uma forma de reforçar o processo e torná-lo realidade em mais países.
 
 
Não à institucionalização do FSM

Há várias “forças” que, recorrentemente, tentam institucionalizar o processo FSM. E no caso de Porto Alegre, transformando em lei para ficar sob batuta do poder público, da Prefeitura Municipal.
Para quem não sabe, está em tramitação na Câmara de Vereadores um projeto de lei do executivo que estabelece a anuidade do evento. Isto agrada apenas à “indústria Fórum”, e claro ao capital, ao oportunismo e a despolitização.
 
Não vamos compactuar com esta manobra política e queremos contribuir para o restabelecimento de uma efetiva agenda política de crítica global do sistema.
 
Desta forma, não reconhecemos o evento que está sendo chamado de Fórum Social Mundial Temático 2013/Porto Alegre, por estar na contra mão das lutas históricas contra o neoliberalismo e o imperialismo, o conservadorismo, a institucionalização, orquestrada por governos ou por determinado setor.


Para todas as militantes feministas:

Orientamos a todas as militantes feministas a NÃO participarem deste evento, por entender que ele fere a Carta de Princípios do Fórum Social Mundial, uma vez que não apresenta uma agenda política internacional de contraponto à Davos, ao ao imperialismo, ao neoliberalismo e ao capital. Nossa luta é de resistência ao modelo capitalista patriarcal, representado pelos setores que apoiam este evento de janeiro em Porto Alegre.

Celebramos a derrota do neoliberalismo no campo das ideias e de que contribuímos para isso. Contudo, observamos que “alguns dos temas trazidos pelo alter-mundialismo, têm sido apropriados pelo discurso do capital e apresentados, cada vez mais, como novas mercadorias para servir ao capital. Não vamos permitir que a luta dos povos seja transformada em mercadoria política.
 
Nós, da Marcha Mundial das Mulheres, estamos comprometidas em construir processos para a convergência de lutas e alternativas. Nossa referencia é a Carta Mundial das Mulheres à Humanidade, embasada na igualdade, liberdade, justiça, solidariedade e paz; e atualmente nos focamos na desmercantilização e desmilitarização do mundo.
 
Conclamamos as todas as mulheres a construirmos juntas um outro mundo possível, que passa obrigatoriamente pelo feminismo – numa ação conjunta contra o capitalismo patriarcal, o machismo, o racismo e a lesbofobia. Por um mundo livre de muros e laico.
 
Seguimos afirmando que, para mudar a vida das mulheres, o mundo precisa mudar; mas que também, para mudar o mundo, a vida das mulheres precisa mudar. Tudo ao mesmo tempo e agora!
 
 Marcha Mundial das Mulheres RS