sábado, 28 de setembro de 2013

Desafios para a legalização do aborto na América Latina: uma reflexão sobre o caso do Equador

Por: Maria Júlia Montero*

Intervenção feminista na Assembleia Nacional do Equador.
Intervenção feminista na Assembleia Nacional do Equador.
Nas últimas semanas, chamou-nos a atenção o desenrolar do debate sobre a questão do aborto no Equador. Lá, está em curso uma mudança no código penal, trazendo novamente a polêmica da (des)criminalização do aborto. Porém, no país cujo governo é um dos participantes do bloco de esquerda na América Latina, esse debate parece estar mais difícil do que nunca.
 A deputada Paola Pabón, do Allianza País, partido de Rafael Correa, propôs que sua bancada defendesse, nas alterações do código penal, a descriminalização do aborto em caso de estupro – atualmente, a legislação permite o aborto caso a violação seja feita apenas contra mulheres com problemas psiquiátricos ou neurológicos ou em caso de risco de vida da gestante.
 Essa posição causou a fúria do presidente Rafael Correa, que chegou a dizer que, caso essa proposta fosse aprovada, renunciaria ao seu cargo. Ainda, chamou as/os parlamentares favoráveis à descriminalização de “traidores da revolução cidadã” e afirmou que a proposta vai na contramão da constituição do país, que “defende a vida desde a concepção”.
 A proposta apresentada pela deputada e pelo movimento feminista era, como dissemos, a de descriminalizar o aborto em caso de estupro para todas as mulheres equatorianas, pois a legislação vigente não criminaliza o aborto apenas se a gravidez resulta de estupro de mulher com incapacidades psíquicas e/ou neurológicas.
Tendo isso em vista, precisamos perguntar: por que o aborto seria permitido a essas mulheres, e não outras? Para responder a essa questão, Cristina Burneo, em seu artigo “Nuestras Muertas” (Nossas Mortas), nos lembra do caso em que o presidente Piñera (Chile) parabenizou uma menina de onze anos por levar adiante sua gravidez:
“Uma menina é mãe só se foi estuprada. Sua relação sexual jamais será consentida. Ela foi amedrontada por um homem. Para que esse homem possa violar impunemente essa menina, é preciso a cumplicidade da sociedade em que ambos vivem. Para que um homem possa engravidar uma menina, é preciso que a família e o Estado encubram a violação e o desenrolar da gravidez, fatos indissociáveis. A uma menina estuprada não é permitido receber atenção médica para interromper sua gravidez. Essa menina não precisa ser “idiota” para provar que não teve uma relação consensual. Só uma mulher ‘idiota’ é incapaz de dizer não? As mulheres ‘não idiotas’ são culpadas a priori? Podiam dizer não, mas optaram por não fazê-lo, porque não são ‘idiotas’? E as meninas ‘não idiotas’? São culpadas por ser lúcidas? O que diz isso do que o Estado concebe como incapacidade?”. Fonte: Hoy – Nuestras muertas.
Segundo o raciocínio perpetuado pelo Estado Equatoriano, as mulheres mentalmente deficientes seriam as únicas incapazes de dizer não, ou de resistir a um estupro. Mulheres com suas plenas capacidades mentais poderiam resistir, logo, por que seriam estupradas? Se o foram, é porque não“resistiram direito”. Então, a culpa é delas.
 Dessa maneira, o Estado se exime da responsabilidade sobre a vida das mulheres. Responsabiliza-se só por algumas, aquelas que considera incapazes de se proteger, e obriga as outras a carregarem o resultado de um estupro, ou a se submeterem a abortos inseguros. O Estado fechou os olhos para o fato de que, no Equador, o aborto é a segunda causa de morte materna, ao fato de que uma a cada quatro mulheres sofre violência sexual no país, e que pelo menos 30% dessas violações resultam em gravidez.

 [Intervenção feminista na Assembleia Nacional do Equador]
O movimento feminista equatoriano fez vários protestos e intervenções (além do vídeo mostrado acima): um deles foi durante a troca da guarda presidencial, que ocorre todas as quintas-feiras às onze, e é considerado um símbolo nacional. As mulheres foram lá com carros de som, e “perturbaram” inclusive o momento do hino nacional.
 Em entrevista, o presidente respondeu que as manifestantes seriam “jovenzinhas malcriadas”, “menininhas pró-aborto”, “sabidas”, e “manipuladas por velhas politiqueiras (…) os dirigentes de sempre”, e teriam falado um monte de “tonterías. Afinal, elas tinham interrompido um “ato cívico”. O que seriam senão um bando de meninas malcriadas?

Devo dizer que o presidente Rafael Correa não agiu diferente de nenhum político machista e conservador (sim, de direita, isso mesmo). Na audiência pública sobre o “Projeto de Lei do ônibus rosa”, que aconteceu dia 23, nós da MMM e de outras organizações feministas que estivemos presentes fomos chamadas de “militantes teleguiadas”, e “pau mandado” por vereadores do PSDB. Sim, do PSDB. Óbvio: para os machistas, as mulheres não se movem pela própria vontade. Sempre haverá alguma outra coisa, externa, que as motive. Seguindo esse mesmo raciocínio, as feministas equatorianas estariam ali atrapalhando o “ato cívico” simplesmente para desgastar o governo, e não para protestar por seus direitos. Para esses homens, é inadmissível que pensemos por nós mesmas e lutemos pelos próprios direitos, pois admitir isso seria reconhecer que as mulheres podem exercer sua autonomia – e, claro, admitir a possibilidade de estarem errados.
 A ameaça de renúncia do presidente Correa acabou por fazer com que a proposta fosse retirada, para “não causar rachas”. Mais uma vez, o direito das mulheres é deixado de lado em nome de uma pretensa unidade. Esse discurso, nem um pouco novidadeiro para nós, feministas, acaba por ajudar os setores conservadores a perpetuar a criminalização das mulheres, e jogar as consequências disso para debaixo do tapete.
 Infelizmente, essa não é uma realidade exclusiva do Equador. Nos governos de esquerda da América Latina, salvo raras exceções, como o Uruguai, pouco ou nada mudou com relação às respectivas legislações sobre o aborto. A Bolívia e a Venezuela não legalizaram o aborto, embora tenha havido tentativas. Alguns países até retrocederam, como foi o caso da Nicarágua. Daniel Ortega foi eleito com o discurso de uma Nicarágua “cristã, socialista e solidária”. O resultado disso foi a aprovação de uma lei que proíbe e criminaliza o aborto em todas as circunstâncias, dando um passo atrás em relação à legislação anterior, que autorizava o aborto terapêutico quando a vida da mãe estivesse em risco.
 Estamos falando, aqui, de governos de esquerda (ou progressistas, como queiram), que inclusive fazem parte da ALBA – Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América. A Bolívia, por exemplo, tem um projeto de políticas e reformas que tem como horizonte a despatriarcalização do Estado – assim como o Equador, justamente seguindo o exemplo do primeiro.
 Como é que o presidente de um país que se propõe a colocar em andamento políticas de despatriarcalização do Estado pode tratar dessa maneira a questão do aborto e as militantes feministas – que inclusive ajudaram a elegê-lo? Como pode chamar de “traidores da revolução” aquelas e aqueles que apresentaram a proposta de descriminalização do aborto? Como pode ignorar a morte das mulheres que são justamente aquelas que a revolução pretende ajudar?
 Isso não significa, é claro, que agora vamos dizer que esses governos (que ou retrocederam, ou tiveram poucos avanços) são péssimos e não servem para nada. Muito pelo contrário – são inúmeros os avanços, disso não há dúvida alguma. Além disso, obviamente, nada vai mudar de uma hora pra outra, é preciso avaliar a correlação de forças e outros inúmeros fatores que podem contribuir ou não para a legalização do aborto e para a conquista de outros direitos. Porém, o que temos visto recorrentemente é uma secundarização dessa pauta por parte da Esquerda – sempre deixada de lado em nome da unidade, em nome da governabilidade, em nome de qualquer coisa. Isso quando não se faz algo como o feito pelo presidente Correa: um julgamento religioso das mulheres, apelando para o “direito absoluto à vida” (lembrando, ainda, que o Equador é um Estado laico, ou seja…).
Intervenção urbana da MMM em São Paulo. Foto: Cintia Barenho.
Intervenção urbana da MMM em São Paulo. Foto: Cintia Barenho.
A criminalização do aborto e das mulheres é uma forma de dominação sobre nossos corpos. Se o imperialismo toma conta de nossos territórios e ataca nossa soberania nacional, a criminalização do aborto (entre outras coisas) ataca a soberania que deveríamos tersobre nossos corpos. Uma “revolução cidadã” não deveria atentar para isso? Não deveria ser contra o colonialismo machista sobre nossos corpos?
 É preciso que a esquerda tome isso como um exemplo. Uma revolução não será completa se seguir ignorando os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. A legalização do aborto faz parte de um conjunto de transformações necessárias para as mulheres e para a construção de um mundo não patriarcal, sem dominação, opressão e exploração.
 Parafraseando a militante equatoriana em sua intervenção na Assembléia Nacional de seu país: a omissão do Estado com relação ao aborto torna-o responsável por cada morte, cada suicídio de adolescentes por gravidez não desejada. Ouso dizer, ainda, que a posição de todos aqueles que resistem em fazer esse debate torna-os cúmplices do Estado que se omite em relação e estas demandas e necessidades das mulheres, por mais que não desejem isso.
 Juntemo-nos, portanto, às nossas companheiras equatorianas pelo avanço da luta das mulheres na América Latina e contra o avanço do conservadorismo sobre nossos corpos: educação sexual para decidir, contraceptivos para prevenir, aborto seguro, legal e gratuito para não morrer! Que nos somemos e que superemos barreiras, em toda América Latina, em prol de uma esquerda que assuma os compromissos da agenda de lutas feminista: é pela vida das mulheres, é pela sociedade sem opressões e exploração, sem colonialismo, patriarcado e capitalismo que queremos construir.
* Maria Júlia Montero é militante da Marcha Mundial das Mulheres de São Paulo.

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