terça-feira, 7 de março de 2017

Precisamos falar do Assédio




Se tem algo que os homens deveriam saber sobre as mulheres, além de muitas outras coisas, é que é muito raro uma mulher não ter sofrido algum tipo de assédio sexual, alguma violência que partiu justamente de homens. Por mais que isso possa parecer estranho, os homens fazem muito algo que a cultura machista impregnada em nossas almas chega a cegar: naturalizar a mulher como um objeto de sua posse, subalterna a seus desejos, estabelecer uma relação de poder desigual em que a violência passa a ser percebida como causada pela mulher. Essa, entre outras questões, foram levantadas a partir do CineDebate após a exibição do projeto-documentário, “Precisamos falar do assédio”, da diretora Paula Sacchetta, na segunda-feira, 6/3, no CineBancários, para marcar a passagem do Dia Internacional da Mulher.

À exibição do documentário, seguiu-se debate no Casual Gastro Bar, no térreo da Casa dos Bancários, mediado pela jornalista da FM Cultura e crítica de cinema Jaqueline Chala, e com a participação da advogada, militante da ONG feminista Themis (http://themis.org.br/) e professora, Denise Dora, e da militante da Marcha Mundial da Mulheres Claudia Prates. Deve-se dizer, o filme representa um passo adiante na luta das mulheres.

Se até agora uma das razões das invisibilidades das múltiplas violências que os homens praticam contra as mulheres se devia ao fato de as vítimas não narrarem as agressões, o tempo passa a ser outro. Muito dessa espécie de catarse mais do que necessária, urgente, se deve à opção do filme pela crueza de sua metodologia e pela simplicidade da produção: na semana da mulher, de 7 a 14 de março de 2016, uma van-estúdio parou em nove locais em São Paulo e no Rio de Janeiro para coletar depoimentos de mulheres vítimas de qualquer tipo de assédio. Ao todo, 140 decidiram falar. Foram ouvidos relatos de mulheres de 14 a 85 anos, de zonas nobres ou periferias das duas cidades.

Jaqueline comparou o fato de “Precisamos falar do assédio” ter sido filmado dentro de uma van escura, com depoimentos de 26 mulheres, de forma espontânea que remete à estética de entrevistas usada pelo cineasta Eduardo Coutinho, morto em 2014. “O que podemos dizer de mais próximo são os filmes do Eduardo Coutinho. Ele cria uma tal intimidade que ele consegue extrair o que normalmente elas não diriam, ainda que em frente à Câmara. Entendi que esse formato em uma van toda escura é uma escolha da realizadora: optar por uma narrativa sem encenação, sem mediação”, diz.

De fato. As 26 narrativas do documentário apresentadas em poucos mais de uma hora de filmes são curtas, duras, difíceis. Mostram que a vida das mulheres sob um machismo estruturante, naturalizado e violento é de muito sofrimento e que não há classe social nem idade para ser vítima. Há mulheres que só conseguem depor sobre o que sofreram com o rosto escondido por máscara. Todos são comoventes, mas há aqueles que marcam pelo absurdo. Uma senhora de 85 anos teve a coragem de contar que, aos 45, portanto 40 anos antes, fora estuprada quando ia para sua casa na periferia de São Paulo. Quando foi à polícia ver retratos de possíveis suspeitos, reconheceu um colega de escola de 18 anos de sua filha como seu algoz.

Há o caso do patrão que só manteria a moça no emprego se ela se tornasse amante dele. O pastor evangélico que trocou cartas com uma menina de 13 anos; ela levou culpa e teve que se mudar por ter sido a “destruidora” da família dele. A moça que foi estuprada pelo irmão aos cinco. A artista que foi abusada pelo melhor amigo depois de uma noite de festa em que ela ficou bêbada. A senhora que foi abusada pelo médico enquanto fazia tratamento de câncer com iodo radioativo. A namorada que levou uma surra do namorado, teve costelas e pernas quebradas, ficou 15 dias na UTI. Apanhara porque havia repreendido o namorado por olhar para uma menina que saia do bar onde os dois foram comemorar três anos de namoro.

Denise lembrou de sua participação na primeira reunião de mulheres feministas no ano de 1980 em Porto Alegre. A militante feminista da ONG Themis diz que a vida das mulheres ainda é muito difícil, apesar de alguns avanços. Só agora, mostram o documentário e o projeto, a luta das mulheres avança no sentido de elas contarem o que sofreram. Parece muito pouco. Porém, ainda há muito o que avançar. Quando elas contam o que sofrem, muitas vezes não são ouvidas e ninguém acredita. E o pior: são consideradas a causa e levam a culpa do abuso que sofrem.

“É um filme muito triste porque aponta duas possibilidades. A entrevistadora produz certo anonimato na fala. A pessoa não quer ser ninguém. O ambiente do anonimato produziu um conforto para poder falar. A não existência de um anonimato pode ter sido a causa dos abusos ser silenciada. Não existia até agora um recurso que permitisse falar sem que aquilo fosse público. A fala opera como elaboradora do que está acontecendo. Esse filme não seria possível há alguns anos”, acrescenta Denise, referindo-se à metodologia da sala escura proporcionada pela van.

Para a militante da Marcha Mundial das Mulheres, Claudia Prates, o ambiente escuro da van faz uma referência a um lugar de contar segredos. “Chega um momento que é quase um autoflagelo ficar ouvindo tantos depoimentos. Podia dar o nome de muitas amigas que eu conheço que passaram pelo que essas 26 mulheres do filme passaram. O meu próprio nome, inclusive. A van escura me remeteu ao confessionário, ao espelho, ao travesseiro. A van fornecia proteção. Esse tipo de violência é socialmente construída. Não existe uma essência masculina ou negra legítima. Os homens acham que podem assumir o poder que eles acham que têm sobre o nosso corpo, vida e sexualidade. Todos esses casos acontecem porque somos mulheres”, acrescenta Claudia, dizendo que é preciso falar em estupro também, porque é o que ocorre em 50% dos casos de assédio.

Homens, não nos sintamos agredidos por um soco com “Precisamos falar do assédio”. Trata-se de uma oportunidade para a reflexão. Porque somos nós que agredimos com socos, com sexo não consentido, com uma agressão verbal na rua, com uma gentileza fajuta que serve apenas para subjugar a mulher e descartá-la ou agredi-la ante uma negativa. Não é não. Mesmo que a mulher esteja bêbada, nua e nós achemos que ela está se oferecendo para nós, não pode. Lembremos sempre que as mulheres podem vestir o que bem entendem, porque o corpo e a vida são delas.  Não nos pertencem e ponto!

É fato que, por trás de uma violência contra a mulher, tem um irmão, um pastor, um pai, um tio, um policial, um primo, o melhor amigo, enfim, sempre homens que podem surgir do nada atrás de uma esquina escura. Lembremos que são as mulheres que acabam enquadradas em crime de aborto quando optam por interromper a gravidez e precisam ir a um hospital para fazer curetagem. São os homens e não a sociedade inteira e muito menos as mulheres que estão doentes. Como diz a militante feminista Denise Dora: “o trabalho com os homens é também o trabalho do feminismo”. Mas, fato, é um trabalho muito mais nosso. Isso porque as mulheres muitas vezes só vão se dar conta de que sofreram algum tipo de abuso muito tempo depois. Leva meses, anos ou uma vida até saber que não teve culpa de nada.

Que tenhamos a mesma coragem de caminhar na direção do reconhecimento da nossa cultura machista e violenta que as 26 mulheres do documentário tiveram, reconhecê-la enfrentá-la e mudá-la. É tarefa para homens de boa e de má vontade. A frase da menina que ficou 15 dias na UTI de um hospital depois de ser espancada pelo namorado, tem muito a ensinar aos homens: “Nós somos mais fortes do que isso”. E muito mais fortes do que nós! Assim como um pequeno fragmento de depoimento de outra menina abusada há três anos: “Se existisse feminismo, há três anos, eu não deixaria passar”.

Para fazer uma exibição pública do filme, siga a orientação do projeto e visite o site https://precisamosfalardoassedio.com

Na semana da mulher, de 7 a 14 de março de 2016, uma van-estúdio parou em nove locais em São Paulo e no Rio de Janeiro. O objetivo era coletar depoimentos de mulheres vítimas de qualquer tipo de assédio. Ao todo, 140 decidiram falar. Ouvimos relatos de mulheres de 14 a 85 anos, de zonas nobres ou periferias das duas cidades, com diferenças e semelhanças na violência que acontece todos os dias e pode se dar dentro de casa, em um beco escuro ou no meio da rua, à luz do dia.

O documentário traz uma amostra significativa dos depoimentos, 26 deles, além de mostrar uma parte importante do processo de filmagens: como as mulheres se sentiam ao contar seus casos? Nos depoimentos puros, sem qualquer tipo de interlocução ou entrevista, acompanhamos um desabafo, um momento íntimo ou a oportunidade de falarem daquilo pela primeira vez. Nas trocas com as meninas da equipe antes e depois dos depoimentos, permitiremos que o espectador entre em contato com uma reflexão da depoente sobre sua própria história, e às vezes sobre o próprio projeto.

Quer fazer uma exibição pública do Precisamos falar do assédio? Escreva para: contato@mirafilmes.net

Fonte: Imprensa SindBancários


Na Semana da Mulher, de 7 a 14 de março, uma van-estúdio visitou nove lugares em São Paulo e Rio de Janeiro, passando pelo centro, zonas nobres e periferias das duas cidades coletando depoimentos de mulheres vítimas de assédio. Dentro da van, as mulheres ficavam sozinhas para falar, sem qualquer tipo de entrevistador ou interlocutor, para se sentirem à vontade e poderem contar o que quisessem. As que preferiram não se identificar, podiam usar uma das quatro máscaras disponíveis que representavam os motivos pelas quais elas não queriam aparecer: medo, vergonha, raiva ou tristeza.



Evento no face: AQUI

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